Marta Vitorino

Se me derem a escolher, escolho os meus filhos e acabou !” Teresa Quintas Chopin estل na sua pequena casa em Viarmes, a pouco mais de 25 quilَmetros do aeroporto parisiense de Charles De Gaulle. Sentada à mesa, coberta por uma toalha de plلstico quadriculada, a emigrante portuguesa tem a seu lado três dos seus seis filhos. Nمo os viu crescer.

Teve-os do casamento dos seus 16 anos, com um tunisino substancialmente mais velho, que lhos levou, ainda crianças, para a Tunيsia. Quando cresceram, os que puderam, fugiram. Um a um. Sَ a morte e a cadeia impediram a fuga de Fلtima e Omar, este ْltimo preso em Tunis, acusado de terrorismo. Pertence a um grupo de nome enigmلtico - ‘internautas de Zarzis’.

Na costa oriental da Tunيsia, em frente à ilha de Djerba, Zarzis cresceu virada para o Mediterrâneo e para o turismo. Foi para uma casa térrea, tيpica daquelas paragens em que o deserto come o verde, que Ali, Ghalia, Ahmed, Ramzeddine, Fلtima e Omar foram levados pelo pai. Ali cresceram.

Em 1986, Mohamed aproveitou o mês de Agosto para levar os filhos, com idades entre os dois e os nove anos, à terra onde nascera. Iam de férias. Deveriam regressar a França.

A 1500 quilَmetros, de pé nas chegadas do aeroporto de Orly, Teresa iniciou, no final desse mês, uma longa espera de 15 anos. “Os meus filhos nمo estavam no aviمo. Esperei, esperei, imaginei tudo o que se pode imaginar. Quando cheguei a casa, jل estava doente. Telefonei para lل e ele atendeu o telefone a rir-se ; dizia que nunca mais veria os meus filhos.”

Corria a meio o processo de divَrcio de Mohamed Chlendi e Teresa Quintas. Para a portuguesa era o princيpio de um modo de vida, sempre em luta pelos filhos. Primeiro para lhes conseguir dizer que uma mمe nunca esquece, depois para os abraçar, os ter de volta. E, desde 2003, para libertar aquele que, por um triz, nمo conseguiu voar para França, agarrado pela polيcia do estado tunisino e condenado a 13 anos de pena numa cadeia que lhe mata todos os dias um bocadinho de vida.

TERESA EMIGROU PARA FRANاA com os pais em 1970. Tantos anos depois, entre os érres da lيngua de adopçمo, ainda se lhe nota no português a pronْncia do Norte de Portugal, do distrito de Braga, onde nasceu hل 46 anos. “Casei muito nova, aos 16 anos, ele tinha 34. O senhor jل tinha tudo preparado porque nمo imaginava casar com uma pessoa da idade dele, com outras ideias. Teria de ser a criança que eu era e que ele queria moldar à sua imagem.” Saem tortas da garganta as palavras de Teresa ; refere-se sempre ao ex-marido, Mohamed, pelo pronome pessoal ou pelo tيtulo de ‘senhor’.

Um ano depois do casamento, teve o primeiro filho, o Ali ; a seguir nasceram mais cinco com um intervalo de 11, 12 meses. “Até aos 23 anos, sَ fiz filhos.”

Depois abriu os olhos, começou a ver o seu amor لrabe doutra maneira. Mohamed afinal até bebia, depressa se tornou “muito mau”. “Ele batia-me, eu passei... Com a bebida, partia tudo, ameaçava, trazia para casa facas e pistolas. Queria tudo menos trabalhar.”

A adolescente cresceu mمe e teimosa, depressa saiu da sua casa para casa dos pais. Era o Verمo de 1984. No mês dos emigrantes, regressou a Portugal, à terra, com os pais, os irmمos e os filhos. Ghalia, a filha mais velha, ainda se lembra das festas populares de uma terra estranha, com lيngua que hoje entende mas nمo fala.

NA PARسQUIA de Santa Marinha de Oleiros, Teresa baptizou as crianças. “Um dia, ele apareceu lل, vinha para buscar os filhos. Eu disse-lhe que estلvamos em Portugal de férias, que voltaria a França.” Teresa acaba por regressar, inclusive à casa donde fugira. Mohamed “andou mais assim, mais assim”, a persuasمo funcionou. “Quando entrei em casa, o senhor disse que jل me podia matar.” A obsessمo de Teresa passa a ser um tecto. Uma casa que a abrigasse, a ela e aos seus seis filhos - “nمo era fلcil e nمo podia ficar em casa de ninguém com tantas crianças.” Quando arranja, aproveita a ausência de Mohamed, ensaca as roupas em sacos de plلstico preto, pega nos filhos - o mais pequeno tinha dois anos - e foge.

Durante três meses vivem sozinhos. “Tinha muito medo que aquele senhor nos descobrisse. Esse dia acabou por chegar. Ele bateu à porta, deu o papel de um medicamento para um dos meus filhos e foi embora.” O processo de divَrcio corria, Teresa espera a guarda legal dos filhos. Mohamed deixa de ameaçar, exige apenas a guarda partilhada dos filhos.

Em Julho de 1986, o primeiro mês de férias foi o ْltimo que Ali, Ghalia, Ahmed, Ramzeddine, Fلtima e Omar viveram com a mمe. No mês seguinte, o pai quis levل-los à Tunيsia, a Zarzis, a terra onde nascera e onde mora toda a sua famيlia. Teresa arrepiou-se mas nمo se opôs. “Disse-lhe apenas : ‘Vê lل que, quando fui de férias a Portugal, regressei’.” A guarda legal dos filhos concedida pela lei francesa nمo vale nada na Tunيsia, o paيs protege os seus naturais, a cultura a preponderância do pai sobre a mمe. Durante um ano, Teresa nمo consegue saber das crianças.

Em meados de 1987 começa a odisseia. Aluga um carro e percorre sozinha 600 quilَmetros em terra tunisina. Tinha comprado um contacto que lhe deveria trazer os filhos. “Com dinheiro compra-se tudo ; vende-se o pai e a mمe por dinheiro.” Mas o contacto comprado trai-a. Mohamed fica a saber que a ex-mulher estل ali para levar os filhos, à socapa, mesmo sem ter os passaportes que ele guarda. O estratagema incluيa, também a troco de dinheiro, o regresso de barco até Marselha.

Teresa volta a Paris sozinha. Conhece outras francesas com filhos levados pelos pais para o Norte de ءfrica, que contratam advogados cuja acçمo se lhe afigura lenta e pouca. “Elas sَ conseguiam ver as crianças um quarto de hora ou nunca conseguiam descobrir para onde o pai os tinha levado.”

OS PACOTES COM ROUPA e os brinquedos que envia retornam na volta do correio. As cartas que Teresa manda, o pai esconde-as por ler mas gasta o dinheiro que levam dentro.

Para Teresa começa o trabalho de paciência - vai a Zarzis e volta e torna a ir e bate à porta até conseguir entrar. Lembra-se da primeira vez que abraça os filhos ; decorria o acto eleitoral que elegeu o actual presidente Zine El Abidine Ben Ali, em Novembro de 1987.

“Sَ consegui tudo sozinha, sem ajuda de ninguém, porque os meus filhos nمo me esqueceram. E o senhor fez-lhes uma lavagem cerebral, disse-lhes que tinha sido a mمe a abandonل-los.” Nos primeiros anos, a presença de Teresa sَ é sentida quando esta vai a Zarzis, sempre carregada de brinquedos e roupa. “Acabei por ganhar terreno e passei a conseguir apanhar um aviمo, chegar lل e vê-los. Mesmo que ele me chateasse a cabeça.”

O tempo acabou por ser o maior aliado da mمe. Com a entrada dos filhos para o colégio, Teresa passa a enviar a correspondência para casa de colegas. A ligaçمo filial corre finalmente sem interrupçُes. Quando começam a entrar para a Faculdade, a Internet ganha à folha de papel, a correspondência jل nمo precisa de tinta. “Eles estavam longe do pai, a cento e tal quilَmetros. Foi assim que começلmos a viver um bocado.”

Mas a Internet que os aproximou, havia de a separar de um dos seus seis filhos, logo quando o corredor entre Zarzis e Paris tinha sido realidade para três dos seus rapazes. “Quando o mais velho atingiu a maioridade enfrentou o pai e ele devolveu-lhe o passaporte. O meu filho veio ter comigo. Foi o primeiro.”

TERESA CASA-SE NOVAMENTE. Nasce Guillaume, o miْdo crescido demais para os oito anos, que gravita em torno da saia dela na casa de Viarmes.

Grلvida, vai a Zarzis comunicar aos filhos que vمo ter um irmمo. Diz-lhes que agora precisa de tratar do bebé que vem a caminho, que nمo torna à Tunيsia, que arranjem eles maneira de dar o salto. A porta estل aberta.

Ali chega em 2000, aos 23 anos. Ahmed em 2001 e Ramzeddine em 2002. Em 2003, Omar preparava-se para vir, quando polيcia à paisana bateu à porta da casa de Zarzis. “Eles começaram a falar com ele, depois meteram-no dentro do carro.” Durante 18 dias, ninguém soube nada de Omar.

A 27 de Fevereiro dizem a Mohamed que o filho estل numa prisمo militar. “Quando o pai viu o filho e o filho viu o pai, nمo se conheceram. Omar estava perdido da cabeça dele, tinha levado tanta porrada que estava desfigurado.”

O filho mais novo de Teresa Quintas e Mohamed Chlendi tinha 20 anos quando foi detido, ele e mais cinco jovens, todos de Zarzis. Teresa diz que Omar, antes de ser transferido para uma cadeia em Tunis, a capital tunisina, esteve preso nu, “suspenso pelas correias que os mecânicos usam para tirar os motores dos carros.”

Na Tunيsia restavam Fلtima e Ghalia. “A 8 de Setembro de 2004, recebi um telefonema com a notيcia. Fلtima ia num carro com o pai, inscrever-se na faculdade. O senhor disse que o tractor ia sem luzes. Ela era muito alta, ia sentada de lado no banco de trلs. O pai guinou, escapou com vida, ela morreu.” Os cotovelos de Teresa apoiam-se em posiçمo de desgosto na mesa da sala da casa de Viarmes, nada do que lhe aconteceu lhe faz às mمos e aos olhos aquilo que lhe faz a morte da filha. Regressa a Zarzis para o enterro.

Ghalia, a menina que se lembra das festas de Braga, fica sozinha. Hل muito que jل deixou de suportar a vida na Tunيsia : “Lل uma mulher sai duas vezes de casa, quando vai para casar e para enterrar.” Ela sente-se vigiada pelo pai, vigiada pelo governo por causa do irmمo - “foram ao quarto da Faculdade revistar tudo.”

Rouba o passaporte e chega com a roupa do corpo ao aeroporto de Orly. Ao telefone com Teresa, Mohamed chora aquela filha. A portuguesa responde : “Agora jل sabes o que eu senti.”

“ESTOU COMO VOCتS SABEM, todos os dias espero pela hora da verdade em que possa sair deste buraco mas nada de novo, os dias sَ se repetem. Espero rever-vos proximamente inchallah, de ter mais ocasiُes para vos ver, vos abraçar a todos (...) Entمo como prometi 1000000....... beijos para si e toda a famيlia, da parte de Omar.”

Três anos antes desta carta, na véspera do julgamento, Teresa reviu o filho na cadeia. Estavam separados por duas grades. Nمo se puderam abraçar. O filho mais novo da sua relaçمo com Mohamed foi condenado a 19 anos de prisمo, depois comutados para 13 em recurso judicial de 6 de Julho de 2004.

Nessa vez, abraçou-o na sala do Tribunal. “Durante dez horas de processo, estiveram todos de pé e nunca puderam falar da tortura e do horror. As provas que os condenaram foram um cartمo de carregamento de telemَvel, pلginas de Internet sem endereço. A prova principal era um tubo de cola.”

Para o Estado tunisino, os seis Internautas de Zarzis sمo culpados do crime de terrorismo e de ligaçُes à Al-Qaeda. Para Teresa, o seu filho é sَ culpado de aceder à Publinet, os postos de Internet pْblicos - naquela terra uma necessidade turيstica. “Como pode ele ser terrorista, meu Deus ? Sَ por ir à net ? Como é possيvel ? Eles eram todos de Zarzis mas nem eram todos amigos. Isto foi sَ para servir de exemplo.”

Teresa Quintas retoma a caminhada dolorosa para a Tunيsia. Em Janeiro de 2005, quando o visita na cadeia encontra-o cabisbaixo, com as mمos cobertas pela camisola. Teresa, que tinha conquistado visitas de proximidade graças ao consulado francês em Tunes, arregaça-lhe as mangas. “Ele estava todo comido pela sarna e tinha os dedos dos pés infectados.” Vira-se do avesso, na angْstia interpela os guardas e, no dia seguinte, fala com o director da prisمo. Omar recebe a visita de um médico, ganha um colchمo e um cobertor.

GUILLAUME RODOPIA EM TORNO da mمe que voltou hل três dias da Tunيsia ; sabe que ela foi ver o seu irmمo preso. “Omar estل com um problema nos joelhos, precisava de ser operado. Mas o que me preocupou mais foi ele dizer que estل a pensar fugir. Eu disse-lhe ‘nمo faças isso’, estamos a fazer um trabalho muito grande, nمo faças asneiras. Tenho medo de que ele seja apanhado e que morra. Muitos morrem na prisمo.”

Os dias de Teresa Quintas, Chopin pelo ْltimo casamento, sمo de trabalho : numa instituiçمo de idosos, em casa e ao computador. “Por causa da Internet foi o meu filho preso, por causa dela serل liberto.” Ela acredita que quanto mais barulho fizer, mais protestar junto de organizaçُes internacionais, mais mobiliza a opiniمo pْblica e mais pressiona o estado tunisino. Mais perto estarل de abraçar em liberdade Omar.

Na sua pequena casa em Viarmes, para onde se mudou hل seis meses, Teresa Quintas prepara para dia 17 a segunda ediçمo de um concerto de solidariedade para com o seu filho de Zarzis : “O meu marido actual nunca acreditou e nem depois aceitou que os meus filhos viessem. E, hoje em dia, a minha vida é isto, lutar pelo Omar. Pedi outra vez divَrcio, vendi a boa vivenda que tinha, perdi um bom emprego e é assim a vida e nمo me importo. Se me derem a escolher, escolho sempre os meus filhos e acabou !”

O FENسMENO FRANCتS

RAPTOS

“Este problema (do rapto de crianças pelo pai) estل a aumentar todos os anos por causa da incapacidade de resolver os casos, mas também devido ao aumento da emigraçمo”, lê-se no relatَrio de Michael Hancock do Comité Europeu para os Assuntos da Famيlia, Saْde e Sociedade. No inيcio da década de 80, dez anos depois do problema se começar a notar, com o inيcio da emigraçمo لrabe, o estado francês estabeleceu acordos bilaterais com a Turquia, Marrocos e o Egipto. Estes acordos falharam : “As crianças raramente regressam a França.” Razُes ? “A lei nestes paيses mulçumanos, que recusam a dupla nacionalidade, dمo predominância aos direitos do pai, consideram a emigraçمo um fenَmeno temporلrio e, por isso, os filhos entretanto nascidos sَ podem pertencer à cultura do pai”, escreve Hancock. Em 2000 havia identificados 800 casos de raptos.

CONDENAاصES SEM FUNDAMENTO

DOSSIER ZARZIS

“O dossier de acusaçمo dos jovens de Zarzis é demasiado escasso para justificar uma pena tمo grande. No decurso do processo, a utilizaçمo da Internet serviu para suportar condenaçُes sem fundamento (...)”, lê-se num documento dos Repَrteres Sem Fronteiras.

O processo de Zarzis condenou oito pessoas, duas nمo cumprem pena por residirem em França e na Alemanha. Um menor de idade foi condenado a 24 meses em Tribunal de Menores e aguarda o recurso da decisمo judicial.

No Fَrum Barcelona 2004, Sihem Bensadrine do Forum Nacional para Liberdade na Tunيsia disse : “A 22 de Junho, oito pessoas foram condenadas por (...) visitar sites de armamento. O dossier de acusaçمo é desprovido de qualquer prova consistente, a nمo ser as prَprias confissُes arrancadas sob tortura e que foram por eles desmentidas no Tribunal.” A Aministia Internacional tem mostrado preocupaçمo com a falta de liberdade de expressمo e a situaçمo dos presos polيticos. Fernanda Cachمo, enviada especial a Paris